Raízes e saberes: Alagoas e o ensino indígena e quilombola
- noticiasmare
- 24 de set.
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Matrículas crescem, professores se formam e novas escolas são construídas, mas entraves políticos e preconceito ainda limitam o ensino diferenciado
Por Maria Clara Gomes e Yasmin Henrique

Muito além do que está registrado nos livros, a educação em Alagoas tem buscado novos caminhos para atender às comunidades quilombolas e indígenas. O estado aposta em um modelo que não apenas reconhece, mas valoriza e celebra as identidades, línguas e tradições desses povos. A proposta representa um avanço importante na consolidação de um currículo decolonial e inclusivo, que respeita as raízes culturais em vez de silenciá-las.
O cenário nacional ajuda a dimensionar essa realidade. De acordo com o Censo Escolar 2023, foram registradas 278.030 matrículas em escolas de comunidades quilombolas e 302.670 estudantes na educação indígena, esta última concentrada, em sua maioria, em territórios tradicionais.
A garantia de um ensino diferenciado está prevista na Constituição Federal de 1988, que assegura aos povos indígenas o direito à preservação de suas culturas e línguas. Em Alagoas, esse processo ganhou força nos anos 2000, quando a Educação Escolar Indígena foi estadualizada. A partir do Decreto Estadual nº 1.272, de 2003, o governo assumiu a gestão de 15 escolas indígenas em diferentes regiões do estado.
Hoje, a rede estadual conta com 20 escolas desse tipo, distribuídas em 12 comunidades e responsáveis por atender cerca de 3.650 estudantes. Segundo a Secretaria Estadual de Educação, os municípios com maior número de matrículas são Palmeiras dos Índios (966), Pariconha (800), Porto Real do Colégio (656) e Joaquim Gomes (636).

A educação indígena e quilombola no estado é norteada por legislações e diretrizes nacionais. A Lei nº 11.645/08 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas do país. Já as Diretrizes Curriculares Nacionais orientam a implementação de práticas pedagógicas que respeitem a identidade cultural, a língua materna e a organização social de cada povo.
Outro instrumento fundamental de acompanhamento é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), calculado a partir de avaliações nacionais, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), e dos indicadores de fluxo escolar, como aprovação e abandono. Em Alagoas, as escolas indígenas têm registrado avanços, sobretudo na última década.
Além disso, aproximadamente 240 estudantes indígenas de graduação receberam bolsas do Programa Primeiro Emprego. Sempre que possível, os estágios foram realizados nas próprias comunidades, fortalecendo vínculos locais e ampliando os impactos positivos sobre a educação indígena no estado.

Educação que honra a cultura local
A essência de uma educação verdadeiramente diferenciada está na sua capacidade de dialogar com as raízes de quem a recebe.
Em Alagoas, esse compromisso se materializa no cotidiano escolar: as escolas indígenas incluem no currículo um componente específico chamado “Cultura Indígena”, ministrado por professores das próprias comunidades.
Embora não sejam classificadas como escolas bilíngues — já que as línguas originárias não são utilizadas como principal meio de instrução — esses espaços preservam e valorizam termos e expressões ancestrais, reforçando vínculos culturais que ultrapassam a sala de aula.
Para Yaritsa Lima, estudante do 9º ano do ensino fundamental da Escola Estadual Indígena Pajé Miguel Selestino da Silva (E. E. I. Pajé Miguel Selestino), localizada na Aldeia Fazenda Canto, Terra Indígena Xukuru-Kariri, essa proposta é motivo de orgulho.
Ela conta que se sente feliz em aprender em um espaço que a aproxima ainda mais das tradições da família e da comunidade. “A escola traz para dentro da sala de aula aquilo que muitas vezes só era falado em casa”, afirma.
Yaritsa ressalta que esse aprendizado a faz olhar para sua cultura com mais orgulho e compreender melhor seu valor. Para ela, a escola é também um “espaço de resistência e preservação”, que permite sonhar com o futuro sem abrir mão da própria identidade.
Esse movimento tem como pilar o protagonismo dos educadores indígenas. Atualmente, a rede estadual conta com 376 professores indígenas, o que corresponde a 3,37% do corpo docente da Secretaria de Educação. São eles que, a partir de suas próprias vivências, asseguram que o conhecimento ancestral seja parte integrante do ensino, alinhando o aprendizado escolar à identidade cultural de cada aluno.
A importância desse protagonismo é reforçada por Gecinaldo, gestor de uma escola indígena no estado. Ele explica que ter profissionais da própria comunidade atuando na escola é a chave para “garantir processos educativos e práticas pedagógicas próprias vinculados às identidades, aos territórios e aos projetos de bem viver dos povos indígenas”. Segundo o gestor, o resultado é uma reação positiva dos estudantes, já que o modelo de ensino se torna mais estimulante, atrativo, dinâmico e interativo, o que leva a um notável aumento na interação e no envolvimento dos alunos nas atividades propostas.

A palavra de quem vive a mudança
Essa vivência, que para Yaritsa representa orgulho e identidade, está enraizada em uma luta histórica, como destaca Celso Celestino da Silva, Pajé da Aldeia Fazenda Canto, na Terra Indígena Xukuru-Kariri, onde funciona a E. E. I. Pajé Miguel Selestino. Em sua fala, o líder ressalta que a educação faz parte de uma resistência que já dura mais de 500 anos e reforça: “Para nós, o ensino é a coisa mais importante para a construção do futuro. Sem ele, não conseguimos dar continuidade à nossa luta.”
O Pajé observa mudanças significativas nas comunidades indígenas, especialmente no acesso ao ensino superior. “Hoje, vemos nossos jovens entrando nas universidades, estudando medicina, direito, pedagogia. Isso mostra que o indígena está ocupando espaços que antes eram negados a ele, e que também fazemos parte da política de educação do país.”
Entre as maiores conquistas, ele destaca a presença de professores indígenas em sala de aula, uma vitória que garante que o ensino esteja diretamente ligado à realidade das comunidades. “A escola só tem sentido se dialogar com a nossa cultura. Quando temos nossos professores ensinando, junto com os mais velhos, conseguimos passar adiante o que aprendemos dos nossos ancestrais.”
Essa integração entre escola e comunidade, segundo o líder, fortalece a identidade e mantém vivas a cultura e a linguagem. “Se os jovens não souberem de onde vieram, não terão forças para seguir em frente. Por isso, precisamos manter viva a memória e os ensinamentos dos nossos antepassados.”
Com firmeza, ele conclui: “Hoje eu tenho a obrigação de levar essa luta contínua por direitos e pela preservação cultural para o futuro dos nossos jovens. A educação é o caminho para que isso aconteça, porque é através dela que garantimos nossa resistência e sobrevivência.
Alunos e membros de comunidades indígenas na inauguração de algumas escolas em Alagoas (Fonte: Ascom SEDUC)
Os desafios além da pedagogia
Apesar de reconhecer os avanços, o Pajé Celso não hesita em cobrar do Estado. Ele afirma que o ensino diferenciado ainda está longe de se concretizar plenamente e denuncia que os alunos indígenas seguem enfrentando racismo, discriminação e invisibilidade quando estudam em escolas fora de seus territórios. “Muitas vezes, nossos filhos são tratados como se não pertencessem àquele espaço. O preconceito dói, machuca, e a escola deveria ser lugar de acolhimento, não de exclusão”, lamenta.
Para ele, as maiores conquistas não são apenas pedagógicas, mas políticas: a garantia de que professores indígenas participem ativamente do processo de ensino. “Foi uma luta dura conquistar esse espaço. Hoje temos nossos professores dentro das salas de aula, trazendo o nosso jeito de ensinar, mas ainda precisamos que o Estado reconheça isso como um direito permanente, não como uma concessão”, reforça.
O Pajé também alerta que a educação indígena não pode ser pensada de forma isolada. Ela está diretamente ligada a uma questão ainda mais fundamental: a terra. Em tom de denúncia, ele questiona: “Como que eu vou ter uma educação se eu não tenho terra? Como que eu vou falar de saúde, de merenda, de futuro, se não tenho o território para viver?” Para ele, o território é a base da existência: garante saúde, alimentação, cultura, acesso a políticas públicas e a possibilidade de construir um futuro digno. “Sem terra, não há vida. Sem vida, não há educação”, conclui.
Ele critica ainda a lentidão e o descumprimento dos direitos previstos na Constituição de 1988, que, em sua visão, continuam sendo negados pelos governos. “A Constituição nos garante direitos, mas o papel aceita tudo. Na prática, muitas vezes esses direitos não chegam até nós. Por isso a luta nunca vai parar”, afirma.
Entre avanços e barreiras: o papel da SEDUC
A Secretaria de Estado da Educação de Alagoas (SEDUC) reconhece que a implementação da educação escolar indígena ainda enfrenta obstáculos estruturais e políticos, muitos deles vinculados às diretrizes nacionais. De acordo com o Núcleo de Educação Escolar Indígena (GEEEI/SUDEPE), as principais dificuldades envolvem a inexistência de mecanismos nacionais para validação e atualização de materiais didáticos, além da falta de regulamentação de concursos públicos que assegurem estabilidade aos professores indígenas.
Mesmo diante desses desafios, o governo estadual e o governo federal anunciaram investimentos significativos para 2025 e 2026, somando R$104,5 milhões distribuídos em salários, construção de escolas e merenda escolar. Para os próximos anos, a SEDUC projeta novas metas, como a institucionalização da docência indígena por concurso público, a modernização da infraestrutura, a oferta de cursos de pós-graduação para formação continuada, a criação de um currículo intercultural e a articulação com instituições como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e universidades.
O futuro da educação indígena em Alagoas, no entanto, como lembra o Pajé Celso, depende não apenas de investimentos ou de propostas pedagógicas inovadoras, mas da superação das barreiras políticas e burocráticas que ainda comprometem a vida e os direitos dos povos originários.
Alunos e membros de comunidades indígenas na inauguração de algumas escolas em Alagoas (Fonte: Ascom SEDUC)






















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