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Maceió subversiva: o estilo de vida Punk na capital alagoana

  • noticiasmare
  • 23 de set.
  • 10 min de leitura

Agressividade, subversão e luta. Conheça o desenvolvimento do Movimento Punk na cidade de Maceió


Por Sinval Autran Ódio, antipatia, desconfiança e desprezo geral pela espécie, pelo comportamento e pela natureza humana. Misantropia, o que parecia ser apenas mais um termo para designar revolta, foi justamente o que causou estrago na cena Punk local na década de 1990. Em Maceió, o ódio pelo ser humano se tornou nome de uma das bandas mais influentes do estado. Liderada pela voz potente de Sandney Farias, a banda Misantropia era (e continua sendo) a definição de Punk, não só pelo significado formal do termo, mas pelo ritmo agressivo que movimentava o cenário Hardcore (HC) alagoano.


Numa época em que o Movimento AnarcoPunk ganhava força na região Nordeste, a banda Misantropia emergia no cenário alagoano junto aos acordes e arranjos agressivos de outros grupos Punk que estiveram à frente do movimento local, como Leprosário, HC3, Ejaculação Precoce e Morcegos. O espírito de revolta, as roupas rasgadas e as correntes se tornaram símbolos entre a população jovem maceioense, que se utilizava da música para propagar ideologia e construir um estilo de vida icônico.


Com músicas agressivas, letras sugestivas e comportamentos radicalizados, o movimento chegou ao estado alagoano de uma forma um pouco diferente das produções que já vinham sendo executadas no final dos anos 70 no Sudeste do Brasil. A luta contra o conservadorismo das instituições herdadas do coronelismo nordestino e o anarquismo como resposta subversiva a esse processo de dominação foram as principais pautas utilizadas pelos Punks em suas músicas, panfletagens e manifestações.


“Eu tinha algumas coisas dentro de mim com as quais eu não sabia lidar e que eu não compreendia completamente. O Movimento Punk realmente veio como um estalo pra ligar minha visão de mundo ao meu estilo de vida”, declarou o vocalista da Misantropia ao relembrar sua trajetória no cenário local.


Sandney Farias é considerado um dos principais nomes da cena Punk no estado de Alagoas e na região Nordeste. A banda Misantropia se consolidou como um símbolo de resistência local. (Acervo pessoal de Sandney Farias)
Sandney Farias é considerado um dos principais nomes da cena Punk no estado de Alagoas e na região Nordeste. A banda Misantropia se consolidou como um símbolo de resistência local. (Acervo pessoal de Sandney Farias)

Durante as décadas de 1980 e 1990 o Movimento Punk arrastou jovens alagoanos que observaram nesse estilo de vida uma forma de expressar ideologia e lutar contra o sistema. Epaminondas Pascácio Júnior, mais conhecido como Júnior Core, é a prova viva de que o Punk surge da necessidade de gritar. Integrante de duas das mais influentes bandas de Punk HC no estado – Morcegos e Leprosário – e autor do livro “Raízes Punk MCZ: Origens e Memórias do Movimento Punk em Maceió”, Júnior Core ingressou cedo no movimento. Com apenas 18 anos, o musicista iniciou uma participação ativa nas ações subversivas do estilo.


“Desde o início da minha participação no movimento, eu vivi intensamente as atividades promovidas pelo Punk, seja fazendo shows, panfletagens, viagens, encontros ou zines. Essas ações foram muito importantes para minha formação e entendimento social. O Punk pra mim veio como uma tirada de vendas dos olhos, uma luz, deixando questões de mazelas sociais não percebidas, agora às claras”, relata o musicista.


Mesmo diante dos deslumbres do movimento, a romantização não é o melhor caminho para descrever o Punk no território alagoano. Historicamente, o estado de Alagoas sempre esteve associado ao conservadorismo institucional que impunha barreiras às manifestações ligadas à quebra de paradigmas e valores tradicionais.


“Sempre foi muito difícil para os movimentos culturais em Alagoas, e com o Punk não é diferente. Temos uma realidade muito cruel de discriminação, preconceitos e concentração de renda, que se tornaram barreiras no desenvolvimento da população como um todo”, explica Júnior Core.


O Punk surge do fundo de garagem, da revolta e da busca pela igualdade. A banda Morcegos é um dos principais exemplos da subversão alagoana. (Acervo pessoal de Júnior Core)
O Punk surge do fundo de garagem, da revolta e da busca pela igualdade. A banda Morcegos é um dos principais exemplos da subversão alagoana. (Acervo pessoal de Júnior Core)

O Punk contra o coronelismo nordestino


A história do Movimento Punk no Brasil frequentemente tem sua perspectiva contada a partir da visão de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. No entanto, não é preciso muito para constatar que o movimento não se concentrou exclusivamente nas grandes metrópoles brasileiras, mas se difundiu por outras regiões do país, incluindo a região Nordeste e mais especificamente a cidade de Maceió. Basta observar os muros, as fachadas, bancos de praça e postes destacando o símbolo Anarquia é Ordem, por meio de pichações, desenhos, manchas e rabiscos expressando revolta e mensagens subversivas, como “ame o seu ódio” ou “foda-se a política”.


O surgimento do Movimento Punk como um estilo de vida típico de jovens habitantes das grandes metrópoles globais, junto com a forte visão estereotipada e estigmatizada de um território pobre, árido, atrasado e fortemente marcado por características rurais, contribuiu com a invisibilidade da cultura AnarcoPunk nas cidades nordestinas. Na perspectiva dos grandes centros urbanos do Brasil, o Movimento Punk, nascido nas ruas de asfalto e concreto, na velocidade dos carros, na névoa das fábricas e na frieza citadina, não poderia ser associado ao Nordeste.


Em Maceió, o pixo é uma forma de expressar revolta e disseminar ideologia, abordando questões políticas e estruturais, bem como mensagens de revolta. (Acervo da @pixoPunkmcz no Instagram.)


Particularmente, o movimento encontrou uma barreira significativa ao chegar nas terras áridas de Lampião. Além de ter que quebrar os paradigmas institucionais e conservadores dos anos 1990, o Punk nordestino se deparou com a xenofobia das grandes metrópoles do sul do país, que não enxergavam as particularidades de alagoanos, sergipanos, pernambucanos ou cearenses, apenas os tinha como nordestinos.


Apesar do preconceito e das barreiras impostas pelos estereótipos regionais,  Sandney Farias, vocalista da Misantropia, conta que o Movimento Punk nordestino, sobretudo alagoano, surgiu de uma maneira muito bem politizada, com artistas e produtores dotados de uma capacidade intelectual surpreendente. O artista viu a cultura Punk chegar à Maceió de uma forma mais madura e mais bem estabelecida, por conta das transformações e aprendizados vivenciados no sul e no sudeste, onde ele julga ser mais violento.


“Eu acho que o movimento nasceu aqui em Alagoas, e no nordeste como um todo, muito bem politizado. Tem algumas pessoas que sempre tiveram uma capacidade intelectual muito interessante. A galera de Natal (RN) e Aracaju (SE), por exemplo, são uma referência em tudo, tanto musicalmente quanto ideologicamente. Em Salvador (BA) os caras realmente viviam fortemente o estilo de vida AnarcoPunk, com letras muito politizadas”, destacou o vocalista.


Os Punks nordestinos – ao contrário dos setores paulistanos e cariocas, focados no declínio da burguesia e do sistema capitalista – tinham como principais inimigos, os políticos pertencentes a famílias tradicionais que buscavam estabelecer o seu domínio por meio da boa e velha “politicagem”. Mesmo defendendo pautas consideradas universais dentro do cenário Punk mundial, como a crítica ao capitalismo, ao militarismo e ao nacionalismo, os nordestinos sempre procuravam confrontar as diversas formas de violência que se manifestavam localmente.

Festas e eventos estiveram muito presentes na cultura Punk brasileira. O Trash Core, realizado no Sesc, foi um dos grandes movimentos que reuniu ativistas de toda a região Nordeste. (Acervo pessoal de Sandney Farias.)
Festas e eventos estiveram muito presentes na cultura Punk brasileira. O Trash Core, realizado no Sesc, foi um dos grandes movimentos que reuniu ativistas de toda a região Nordeste. (Acervo pessoal de Sandney Farias.)

Maceió core: a perspectiva maceioense do Punk nacional


“Música, ativismo e estilo de vida jovem nas tramas do Punk em Maceió”. A pesquisa organizada pelo doutor em Ciências Sociais e coordenador do Punk Scholars Nacional, João Bittencourt, em parceria com Júnior Core provavelmente é o registro mais completo dos acontecimentos que norteiam a cena na cidade. Com um trabalho intenso de investigação e entrevistas, o artigo redigido pelos pesquisadores descreve as comoções locais durante a chegada do movimento à cidade.


De acordo com os autores “esvaziamento do centro” afetou de maneira considerável  o circuito de lazer da juventude na cidade de Maceió. O fechamento de hotéis, cinemas e, posteriormente, bares e casas de show não estagnaram a dinâmica dos jovens de Alagoas, muito pelo contrário, esse esvaziamento serviu de incentivo para que essa parcela social expressasse a sua revolta e descontentamento com a gestão local. Maceió dava os primeiros passos para a criação de um movimento subversivo.


Júnior Core explica que por ser um movimento urbano, o Punk tem o objetivo de denunciar desigualdades e mazelas sociais. Ele conta que entre as décadas de 1980 e 1990 havia um descaso significativo com os jovens pobres que circulavam pelas periferias do centro da cidade. Observando essa situação, as diversas bandas do movimento passaram a se apropriar dessa situação para criar uma espécie de canal de denúncias mediante a música.


O circuito Punk na região Nordeste sempre esteve interligado entre os diversos núcleos revolucionários e adeptos à contracultura existentes pelas cidades. Com a forte adesão de jovens e a disseminação da ideologia anarquista pela região, os núcleos formaram um movimento unificado, denominado Movimento AnarcoPunk (MAP), uma corrente nordestina de resistência. Na cidade de Maceió, Sandney e a banda Misantropia costumavam participar dos encontros do MAP, que ocorriam geralmente nas tradicionais praças públicas da cidade, como na Praça Sinimbu, Praça Deodoro e Praça dos Martírios.


O vocalista conta que sempre participou de eventos pelo nordeste a convite de bandas inseridas no universo Punk. “Durante um tempo, quando eu falo que a banda estava envolvida nesse contexto, a gente teve contato com muita galera do Movimento AnarcoPunk local. Tanto que em 1994 a gente foi para Natal (RN), a convite de uma banda chamada Descarga Violenta”, o contato entre os “irmãos nordestinos” começava a ganhar força.


A região Nordeste foi palco de diversos encontros de bandas e adeptos do Movimento Punk. Os fanzines eram o principal meio de divulgação. (Acervo anarcoPunk.org.)
A região Nordeste foi palco de diversos encontros de bandas e adeptos do Movimento Punk. Os fanzines eram o principal meio de divulgação. (Acervo anarcoPunk.org.)

Desde o seu surgimento, o Punk maceioense possui uma característica pouco comum entre a comunidade anarquista, a proximidade com os metaleiros. No Brasil, esses dois grupos nunca se deram muito bem, visto que o Punk surgiu como uma forma de oposição ao Rock Progressivo e ao Heavy Metal. Porém, em Maceió, essa relação foi um pouco diferente: os metaleiros mantiveram uma relação amistosa com os jovens Punks da cidade, encontrando mais características comuns do que se imaginava, principalmente em relação ao estilo e as dificuldades enfrentadas por cada grupo.


Um exemplo marcante dessa relação amistosa pôde ser observada com a banda Morcegos, considerada, até nos dias atuais, como a maior referência do metal alagoano. A presença dessa banda no cenário Punk foi muito expressiva para o desenvolvimento do estilo na cidade de Maceió. Segundo relatos de outras bandas, como a Leprosário, os integrantes, diversas vezes, emprestavam aparelhos e disponibilizavam suas casas para os ensaios das primeiras bandas Punks, algo relativamente incomum, principalmente por conta da rivalidade entre esses dois grupos em outras regiões.



As diversas manifestações musicais que ocorriam pelos estados do Nordeste também tiveram um papel significativo na propagação e na evolução desse estilo de vida em Maceió. Durante esses encontros os jovens faziam novas amizades e fortificavam os laços sociais, formando uma comunidade que compartilhava dos mesmos ideais. A interação pessoal, por meio de cartas enviadas entre os entusiastas do Movimento Punk de estados vizinhos, foi um fator crucial para a propagação desse modo de vida.


Na perspectiva do escritor e musicista, Júnior Core, as conexões estabelecidas entre os estados nordestinos foram o ponto-chave para o surgimento e crescimento do Movimento Punk, especialmente para Maceió. Com a promoção de grandes eventos pela região Nordeste, bandas alagoanas tiveram a oportunidade de festivais e ter contato direto com a ideologia AnarcoPunk, possibilitando o surgimento de projetos mais elaborados e politicamente embasados.


“Naquela época havia uma dificuldade enorme para conseguir informações e fazer uma gravação em um estúdio minimamente legal e acessível. Os encontros do MAP no Nordeste serviram de apoio para a estruturação do Punk alagoano e para a circulação de ideias”, destaca.


O Punk alagoano morreu?


A época de ouro do Punk local certamente foi vivenciada nos anos 90. O surgimento das bandas Punk Hardcore acompanhava a disseminação da ideologia anarquista pelo país, e em Alagoas não poderia ser diferente. Mas, como esse movimento se encontra hoje em dia? Será que ele ainda mantém a mesma força desde quando surgiu no cenário da música alagoana?


Atualmente, a música Punk local é sustentada pelo público, por meio do apoio financeiro de pequenos empreendedores, pela produção acadêmica e registros documentais, e pelos restritos acessos a espaços de eventos que se prestam a receber apresentações de bandas e outras atividades mais alternativas.


O Movimento Punk alagoano renovou suas pautas de luta aos longo dos anos, abordando temáticas atuais e cercadas de ideologias progressistas. Um exemplo disso é a banda RÄIVÄ. (Instagram da banda @raivacrust).
O Movimento Punk alagoano renovou suas pautas de luta aos longo dos anos, abordando temáticas atuais e cercadas de ideologias progressistas. Um exemplo disso é a banda RÄIVÄ. (Instagram da banda @raivacrust).

No entanto, desde o seu surgimento, a cultura Punk sempre esteve ocupando esses espaços e recebendo o mesmo incentivo do público que se interessa pelo movimento. José Luiz Rios, conhecido como Buzugo, ativista cultural e o principal nome da movimentação do cenário Punk maceioense, entende a cultura AnarcoPunk como uma instituição independente. “O Punk é autônomo e autogerido, e vai acontecer de uma forma ou de outra, com ou sem recursos e principalmente sem o balizamento de possíveis incentivadores que possam vir a ditar o modo como essas ações deveriam ser realizadas”, disse Buzugo.


Dessa maneira, se o Punk é autônomo e autogerido, o que mantém a cena viva na cidade de Maceió? “Pra mim são dois pontos centrais, assim como em qualquer outro lugar do mundo: ação direta e a ética do Faça-Você-Mesmo (Do It Yourself). A ação direta de inspiração na política libertária é o ponto de partida pra que as pessoas se movimentem em torno de uma atividade, sem esperar apoio, incentivo ou algo em troca, apenas uma ação espontânea que surge da necessidade de querer realizar algo”, essa foi a fala de Buzugo, quando questionado a respeito desse tópico.



A cultura do Faça-Você-Mesmo não é algo novo no cenário Punk, tanto que o movimento surgiu a partir de uma iniciativa independente que compartilhava entre seus integrantes a ideia de subversão e aversão ao sistema. Nesse sentido, transmitir as mensagens e os ideais Punk se tornaram um valor comunitário, junto ao inconformismo coletivo de viver em uma cidade com pensamentos historicamente provincianos e conservadores, o que fomentou o surgimento e a manutenção do estilo de vida Punk na cidade de Maceió, mesmo que com uma frequência menos expressiva.


Apesar da falta de atuação relevante e contínua do MAP no estado de Alagoas e, mais especificamente, na cidade de Maceió, existem referências a esse grupo específico que se mantém por meio de pessoas que participaram em algum momento dessa movimentação.


“A força do MAP pode ser notada na continuidade de ações que se concentram em pautas levantadas desde décadas anteriores, como a relação direta com o modo de pensar e a orientação política voltada ao anarquismo além de questões como feminismo, antirracismo, anti-homofobia, antiespecismo/veganismo, antimilitarismo e principalmente a criação de espaços autônomos que vão de encontro a cultura hegemônica e a estrutura mercadológica. Isso segue vivo aqui na cidade”, atentou Buzugo.


Apesar de não ser como antes, o Movimento Punk continua vivo na capital alagoana, principalmente com a evolução dos meios de comunicação, que passaram a facilitar o modo de transmissão das mensagens subversivas e das ideologias ligadas a esses grupos. Ambientes como o PopFuzz, Rex Bar, Sound Fuzz e Quintal Cultural recebem constantemente bandas de Punk HC e auxiliam na manutenção das atividades, dando oportunidades de sobrevivência ao estilo. No fim o Punk resiste.


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